Valor Econômico - Legislação e Tributos - 09.12.2017 - p. E2
O Decreto nº 8.683 e a receita do caos
Por José A. Cerezoli
Em 25 de fevereiro de 2016 foi editado o Decreto nº 8.683
que, sob a alegação de "beneficiar" o empresariado, tornou a situação
da autenticação de livros mercantis, que já era problemática, num verdadeiro
caos.
Esse decreto federal elaborado pelo Programa Bem mais
Simples do governo federal, acrescentou o artigo 78-A ao Decreto nº 1.800, de
1996, que regulamenta a Lei de Registro de Empresas (Lei nº 8.934, de 1994), passando
a estabelecer, inadvertidamente, que o simples envio da Escrituração Contábil
Digital (ECD) à Receita Federal dispensaria a autenticação dos livros contábeis
transmitidos à Receita Federal do Brasil via Sistema Público de Escrituração
Digital (Sped) pela Junta Comercial.
Essa alteração legislativa foi comemorada por profissionais
contábeis e empresários. Pois o simples recibo de envio da escrituração à
Receita Federal comprovaria a autenticação do livro digital.
O Decreto nº 8.683, de 2016, revela-se totalmente ilegal, já
que contraria disposições legais expressas e específicas
A autenticação de livros digitais que já era complicada com
a Receita Federal e as Juntas Comerciais atuando em conjunto por meio de
sistema informatizado de comunicação tornou-se caótica. Logo após a edição do
Decreto nº 8.683, de 2016, a Receita Federal suspendeu essa comunicação com as
Juntas Comerciais. O que era realizado dentro do Sped passou a ser fragmentado,
agora o empresário que necessita da autenticação de seus livros digitais pela
Junta Comercial deve enviar a ECD para a Receita e depois enviá-lo também à
Junta Comercial.
Neste ponto é que surgem os seguintes questionamentos: o
mero envio da ECD à Receita Federal conferiria segurança jurídica para que a
escrituração possa ser aceita por uma comissão de licitação para fins de
cumprimento das exigências da Lei nº 8.666, de 1993? Seria suficiente para
comprovar a regularidade da escrituração perante o juízo falimentar, diante de
um pedido de recuperação judicial ou de falência, conforme artigo 7º e 51, além
de outros, da Lei nº 11.101, de 2005? Inibiria o crime falimentar pela ausência
de autenticação da escrituração contábil previsto no artigo 178 da Lei nº
11.101, de 2005? Esses livros poderiam ser aceitos como meio de prova segundo
estabelecido no Código de Processo Civil, artigo 417 a 420 da Lei nº 13.105, de
16 de março de 2015?
Olhando por essa perspectiva, vê-se que essa questão vai
muito além do tratamento meramente tributário que se quer dar à autenticação dos
livros mercantis. Parece ter havido um total esquecimento de que essa obrigação
do empresário está inserida num sistema muito maior que busca reduzir os riscos
da atividade empresarial, com previsão em várias leis especiais.
Observe-se que a autenticação pelas Juntas Comerciais
encontra previsão expressa em diversas leis especiais, hierarquicamente
superiores a um decreto regulamentador. Primeiramente, importante observar o
disposto no parágrafo 2º do artigo 5º; nos artigos 10 e 14 do Decreto-Lei nº 486,
de 3 de março de 1969, o qual fixa as normas básicas de escrituração de livros
comerciais. Segundo esses dispositivos, a autenticação de livros mercantis,
para que surta seus efeitos legais, deve ser realizada perante às Juntas
Comerciais.
Embora esse decreto-lei tenha sido editado há mais de 40
anos, ele foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e encontra-se em
vigor com status de lei ordinária, de modo que uma alteração nesse sistema
somente poderia ser implementado por meio de outra lei ordinária ou
complementar. Além disso, em termos de interpretação das leis, verifica-se a
especialidade dessa norma em relação àquelas atinentes ao Registro de Empresas
e Tributária.
Em segundo lugar, a Lei de Registro de Empresas (Lei nº
8.934, de 1994) é clara ao afirmar em seus artigos 32, III, e 39, que a
autenticação dos instrumentos de escrituração é compreendida pelo registro de
empresas e é realizado pela Junta Comercial.
Em terceiro, o Código Civil veio a ser sancionado trazendo a
mesma regra já consolidada pela legislação anterior. Encontra-se expressamente
previsto em seu artigo 1.181 que os livros obrigatórios devem ser autenticados
no Registro Público de Empresas Mercantis.
Pois bem, dessas considerações exsurge uma evidência: o Decreto
nº 8.683, de 25 de fevereiro de 2016, ao rever a dispensa de autenticação pelas
Juntas Comerciais, revela-se totalmente6 ilegal, eis que contraria disposições
legais expressas e específicas, em relação às quais é hierarquicamente
inferior.
O curioso é que a pretexto de simplificar e facilitar a vida
das empresas, essa dispensa trazida pelo irrefletido decreto, acaba
fragilizando ainda mais um precário sistema legal de proteção ao empresário, o
qual possivelmente não poderá, seguindo essa regra, se beneficiar da
recuperação judicial, da falência, da utilização do livro contábil como prova a
seu favor etc.
O que poderia ser aceito, a fim de se contornar a
ilegalidade desse artigo 78-A do Decreto nº 1.800, de 1996, seria interpretá-lo
de forma a que seja aplicável apenas em relação às obrigações tributárias, ou
seja, que o envio da Escrituração Contábil Digital (ECD) à Receita Federal
dispensaria qualquer outra autenticação dos livros contábeis digitais meramente
para fins tributários. Hipótese em que o empresário não sofreria autuação
fiscal por ausência de autenticação dos livros pelas Juntas Comerciais.
O mais grave disso tudo é que a grande maioria dos
empresários e contabilistas tem a impressão de que se encontram amparados pela
lei, desconhecendo a limitação da regra inserida pelo decreto, a qual não
afasta a incidência dos efeitos previstos em pela ausência da autenticação
realizada pela Junta Comercial.
José A. Cerezoli é assessor da Procuradoria da Junta
Comercial do Estado do Rio de Janeiro e advogado consultor em direito
societário
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