Migalhas
Reflexos do Estatuto do Estrangeiro no
Programa de Férias-Trabalho entre Brasil e Alemanha
Pedro Henrique Gallotti Kenicke
O futuro visto do programa férias-trabalho
pode tornar-se sem utilidade para o cidadão alemão que se verá, certamente,
indignado com o labirinto burocrático que é tentar trabalhar no Brasil.
No dia 13 de fevereiro de 2015, o ministro
do Exterior da República Federal da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, visitou
o Brasil para encontro de trabalho com o chanceler Mauro Vieira. Na ocasião, os
ministros assinaram o Memorando de Entendimento entre Brasil e Alemanha sobre
um Programa de Férias-Trabalho. Este enfatiza a cooperação entre os países para
a acumulação de experiência profissional, na medida em que permite o exercício
de atividade remunerada temporária, nos respectivos Estados, para jovens de 18 a 30 anos.
O essencial do Memorando é autorizar, por
meio do visto de férias-trabalho, o exercício de atividade remunerada a jovens
para que possam complementar financeiramente sua estada no país, que deve ser
de até 1 (hum) ano. Desse modo, aquele ou aquela que viajou somente a passeio
por determinado período de tempo e que não possui recursos financeiros para
permanecer mais no país de destino, pode ser empregado temporariamente para
manter seus gastos.
Além dessas condições, o Memorando
estabelece as diretrizes e as regras para que a hipótese aconteça ao exigir que
os cidadãos disponham de plano de saúde e de seguro contra acidentes, de
bilhete de passagem de retorno já comprado, que não sejam acompanhados por
familiares dependentes e que tencionem, a princípio, passar as férias no Estado
destino. É nesse momento que existe uma contradição com o ordenamento jurídico
brasileiro, particularmente com a lei 6.815/1980, o conhecido Estatuto do
Estrangeiro.
No documento assinado pelos dois Estados, a
Alemanha declarou que não haverá nenhum impedimento ou autorização da Agência
Federal do Trabalho “para o exercício desse tipo de atividade remunerada na
Alemanha”. Isto é, o cidadão brasileiro que viaja a Alemanha com o intuito de
passar suas férias pode requerer, nas repartições consulares da Alemanha, o
visto férias-trabalho, o que lhe permite exercer a atividade remunerada sem
qualquer autorização ou inscrição a mais no país. Entretanto, para o cidadão
alemão que queira fazer o mesmo no Brasil, o caminho burocrático é bem mais
árduo.
Segundo o Memorando, o Brasil declarou que,
“para o exercício desse tipo de atividade remunerada no Brasil, os cidadãos
alemães deverão registrar-se junto à delegacia da Polícia Federal mais próxima
do local onde se encontrarem, bem como requerer uma Carteira de Trabalho e
Previdência Social em qualquer Agência do Ministério do Trabalho e Emprego,
mediante apresentação de seu passaporte e de comprovante do seu registro junto
à Polícia Federal.” Percebe-se que não há reciprocidade quando se trata do
passo-a-passo das burocracias. E a causa principal desses complicadores para o
cidadão alemão poder ser empregado, mesmo que temporariamente e sob a proteção
do visto férias-trabalho criado bilateralmente, é o Estatuto do Estrangeiro.
Pela lei 12.968/14, que alterou diversos
dispositivos do Estatuto, ao Ministério das Relações Exteriores é permitido a
edição de normas que visam a simplificação de procedimentos, por reciprocidade
ou por motivos que julgar pertinentes, para a concessão dos vistos de turistas
(art. 9º, §5, I da lei 6.815/80). O Memorando recentemente assinado inclui-se
na hipótese, sendo, inclusive, exceção à norma que proíbe a atividade
remunerada para o estrangeiro que possua visto temporário (art. 98 do
Estatuto).
No entanto, é preciso que se note que, por
ser o Estatuto do Estrangeiro o vértice da política pública relativa a
migrantes internacionais no Brasil – termo geral que alcança desde o imigrante
temporário, o residente e, também, os emigrantes –, o Itamaraty deve seguir
seus dispositivos. Nesse ínterim, a exigência para o cidadão alemão
registrar-se na delegacia da Polícia Federal, e aquela outra de retirar a
Carteira de Trabalho e da Previdência Social na Agência do MTE para uma
atividade remunerada temporária que pode durar até 6 (seis) meses no máximo,
conforme o parágrafo 6 do Memorando, contradizem a intenção do governo
brasileiro de facilitar as relações com a Alemanha relativas ao trabalho, mas
atendem o ultrapassado Estatuto do Estrangeiro (conforme os artigos 30 do
Estatuto e 58 e 63 do decreto regulamentador 86.715/81).
As restrições não são poucas. O cidadão
alemão, conforme a lei 6.815/1980, é obrigado a exercer a atividade remunerada
no Município onde se registrou na delegacia da Polícia Federal e deve comunicar
qualquer alteração posterior, mesmo que seu visto seja válido por 1 (hum) ano
desde sua entrada no Brasil. Por esses motivos, o futuro visto do programa
férias-trabalho, estabelecido entre Brasil e Alemanha, pode tornar-se sem
utilidade para o cidadão alemão que se verá, certamente, indignado com o
labirinto burocrático que é tentar trabalhar no Brasil, ainda que por tempo
determinado.
Conquanto o conceito da “renovação de
credenciais”, formulado pelo Embaixador Gelson Fonseca Jr., designe a política
externa brasileira dos governos Sarney e Collor (FONSECA JR., 2004), a política
migratória do Brasil ainda não se renovou e, com isso, constitui área das
relações internacionais do país que ainda luta para se reerguer sem diretriz
legislativa. Desse modo, o Estatuto do Estrangeiro deve ser repensado, pois seu
fundamento, criado a partir da antiga doutrina da segurança nacional vigente no
regime civil-militar, não se coaduna com a república constitucional e
democrática que hoje vive o Brasil e, portanto, deve ser revogado para dar
lugar a um novo Estatuto das Migrações que facilite as negociações
internacionais e dê tratamento humano ao estrangeiro.
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Referências
FONSECA JR., Gelson. A legitimidade e outras
questões internacionais. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
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* Pedro Henrique Gallotti Kenicke é
mestrando em Direito do Estado na UFPR. Pesquisador do NINC – Núcleo de
Investigações Constitucionais da UFPR. Advogado e pesquisador no escritório
Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados.