Valor Econômico – Legislação & Tributos (Rio) – 03.10.2013
– E2
Os negócios público-privados
Publicado em: 03
out 2013 | 10h 30m 39s
O direito é um mecanismo que define os limites das
interações sociais e econômicas. Conforme Niklas Luhmann, ele neutraliza a
contingência das ações individuais e, por essa razão, é indispensável à
estabilização de expectativas. Ou seja, face às contingências que podem afetar
as expectativas recíprocas daqueles que se relacionam em uma sociedade
complexa, o direito procura garantir que as partes tenham uma relativa certeza
de que o combinado no presente valerá no futuro.
Nas relações negociais entre particulares e administração
pública, a confiança assume particular importância em decorrência da presunção
de legitimidade e legalidade dos atos administrativos e da intrínseca
verticalidade dos contratos administrativos.
O risco do comportamento contraditório da administração
pública inibe a alocação de recursos privados em projetos de interesse público.
A confiança gera, para a administração pública, a
obrigação de não frustrar as expectativas do particular contratado
A perda da confiança nos contratos celebrados com a
administração pública surge quando ela, ao longo do processo licitatório, da
execução contratual e da fiscalização por órgãos de controle, adota
posicionamentos que flutuam conforme a momentânea conveniência da interpretação
de regras jurídicas e contratuais. Nesse cenário, a quebra de confiança
sinaliza falta de comprometimento do poder público, o que contagia
investimentos presentes e futuros.
Os acordos de vontade estabelecidos entre o poder público
e os particulares marcam-se pela consensualidade e pela vinculação isonômica
entre os contratantes. Mesmo assim, os contratos administrativos apresentam
especificidades que marcam, sobretudo, a possibilidade de a administração
pública modificar, alterando ou extinguindo, o vínculo estabelecido entre ela e
o particular contratado. Trata-se de uma decorrência da supremacia do interesse
público.
Diante de um ajuste que pode ser instabilizado
unilateralmente, torna-se imprescindível que o particular contratado tenha a
garantia de que suas legítimas expectativas não serão frustradas. Por essa
razão, segurança jurídica, boa-fé e moralidade administrativa amalgamam-se para
tutelar, no âmbito dos negócios público-privados, a confiança do particular
contratado.
A confiança preserva os valores que sustentam as relações
negociais ao diminuir os perigos derivados da imprevisibilidade do
comportamento humano. Ao proteger as expectativas que são criadas em razão do
relacionamento contratual, a confiança resguarda a previsibilidade, a certeza e
a estabilidade mínima.
A proibição do comportamento contraditório incide nas
relações jurídico-administrativas instrumentalizado pela teoria das
autolimitações administrativas, a qual veda que a administração pública, ante
os mesmos elementos de fato, adote entendimentos contraditórios ou em desacordo
com os precedentes anteriormente firmados por ela.
Ou seja, proíbe-se que a administração pública pratique um
comportamento contraditório em relação a uma conduta inicial, já que esta
despertou a confiança legítima do particular contratado na preservação do
sentido objetivamente extraído dela.
Nesses termos, a confiança gera, para a administração
pública, os deveres de lealdade e honestidade e a obrigação de não frustrar as
legítimas expectativas do particular contratado. É obstado, ainda, o exercício
de um direito em contradição com um comportamento anterior.
A quebra de confiança é contrária às exigências de
previsibilidade e estabilidade que devem permear os negócios público-privados.
No âmbito das contratações públicas, não bastam as previsões legais de garantia
da manutenção da identidade do objeto da avença e de equilíbrio
econômico-financeiro inicial do contrato. É preciso ir além no respeito aos
interesses patrimoniais legítimos do particular que contrata com o poder
público.
Deve-se afastar o risco do comportamento contraditório da
administração pública por meio do estabelecimento de pautas de lealdade e
probidade informadoras do exercício do dever-poder de autotutela
administrativa.
A autotutela – que compreende o controle de juridicidade
dos atos administrativos, bem como a possibilidade de anular os ilegais e
revogar os inconvenientes ou inoportunos – não está condicionada apenas à
obediência ao devido processo legal e às regras de direito adquirido, ato
jurídico perfeito e coisa julgada (judicial ou administrativa). O exercício do
poder de império do Estado sobre os negócios público-privados deve ser
igualmente limitado pela confiança, manifestação do postulado da segurança
jurídica sobre as relações negociais do poder público.
A obrigação de não suscitar levianamente e de não frustrar
as legítimas expectativas do administrado impedirá a indolência, o desvio de
finalidade e a contrariedade aos atos administrativos exarados anteriormente.
Verificada a contraditoriedade desleal da administração pública, o ato
antijurídico é nulo.
A complexidade das contemporâneas contratações públicas –
ligadas, essencialmente, à necessidade de viabilização de projetos que sejam de
interesse público e atrativos ao investimento privado – demanda a superação dos
mecanismos da clássica teoria do contrato administrativo. Acabar com o risco do
comportamento contraditório da administração pública, que se sustenta na
cambaleante ideia de autotutela de legalidade estrita, é apenas o primeiro
passo.
Anderson Medeiros Bonfim é advogado especializado em
direito regulatório e contratos com a Administração Pública no escritório
Tojal, Teixeira Ferreira, Serrano & Renault Advogados Associados