Jornal Valor Econômico – Legislação &
Tributos (Rio) – 13.06.2014 – E2
Por Marcelo Guedes Nunes
O direito no Brasil está mudando. Os
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) protagonizam alguns dos principais
debates políticos nacionais, em assuntos que vão do aborto de anencéfalos à
reforma política, da união homoafetiva ao equilíbrio fiscal. O Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) coordena pesquisas para avaliar o desempenho de
tribunais e o sistema carcerário, entender os litígios de massa dos bancos e
telefônicas para propor ações de política pública. O processo eletrônico se
dissemina e os tribunais começam a criar grupos de gestão estratégica. É
evidente que estamos distantes de uma situação ideal, mas é também claro que
entramos em uma nova fase, de amadurecimento da Justiça.
As mudanças que estão ocorrendo nas esferas
de governo também precisam acontecer na academia. Se até pouco tempo os
juristas eram vistos apenas como estudiosos da lei, hoje a sociedade passou a
exigir deles não apenas o conhecimento dos diplomas legais, mas também a
capacidade de debater a pauta política e propor soluções para aperfeiçoar as
instituições. O Brasil é um país em construção, que ambiciona ser mais justo e
desenvolvido. Diante desses objetivos, o jurista não será completo, nem mesmo
útil à comunidade, se for incapaz de uma reflexão crítica sobre o que se passa na
sociedade.
Para que isso aconteça, o modelo tradicional
do professor de direito, que fala latim, é bibliófilo, cita de memória artigos
de lei e dá lições com base em antigas citações doutrinárias, vai conviver com
um novo tipo de jurista. Observamos hoje em dia o surgimento de um pesquisador
mais realista e interdisciplinar, conhecedor de fundamentos de outras ciências,
tais como economia, sociologia e estatística, que dá suas lições com atenção
nas consequências práticas da lei.
Além disso, a pesquisa em direito precisa
relativizar alguns paradigmas. Primeiro, o direito passa a se tornar uma
ciência empírica. O estudioso do direito deve conseguir descrever de maneira
quantitativa como as instituições jurídicas estão funcionando. Para tanto, ele
precisa se familiarizar com metodologias de pesquisa empírica, especialmente as
de base estatística (como acontece na nova disciplina denominada Jurimetria),
aptas a descrever os fluxos de processos, os tipos de litígio que vão à Justiça
e as tendências dos conflitos. A nova Lei de Falências tinha o objetivo de
aumentar a taxa de recuperação de créditos frente a devedores em estado de
insolvência? Precisamos estudar os processos de falência antes e depois da lei
para entender se o objetivo foi atingido. O novo Código Civil buscou aumentar o
nível de segurança do cotista minoritário em sociedades limitadas? Precisamos
avaliar as exclusões judiciais e extrajudiciais antes e depois do código para
verificar se as mudanças foram bem sucedidas. O jurista deve primeiro conhecer
a realidade para depois propor mudanças.
Segundo, o direito precisa voltar a ser uma
ciência humana, ou seja, uma ciência que estuda o comportamento do homem, e não
uma disciplina exclusivamente preocupada com o significado e a história das
leis. A realidade jurídica é rica em informações sobre as mazelas da sociedade.
Os tribunais são como hospitais e UTIs da nossa vida social, onde vão parar os
casamentos desfeitos, as sociedades rompidas, as empresas falidas, as dívidas
não pagas e os criminosos. Entender como essas pessoas chegaram a essas
situações extremas e de que forma o sistema jurídico impactou na suas vidas é
uma das principais tarefas do jurista contemporâneo. A lei é um medicamento
social e não faz sentido estudá-la separadamente do doente e da doença. O
direito deve deixar de ser um ramo da literatura sobre textos legais para se
tornar uma verdadeira ciência humana aplicada, preocupada com efeitos da ordem
jurídica na vida e no comportamento das pessoas.
O pleno desenvolvimento dessa nova ciência
empírica do direito depende do aproveitamento das bases de dados jurídicas,
acumuladas e esquecidas ao longo de três décadas de informatização da Justiça.
As bases de dados reunidas a partir dos milhões de processos que trafegam pelos
tribunais e órgãos da administração pública formam um rico depósito de
informações sobre as disfunções do convívio social. Os juristas precisam ser
treinados para explorar esse pré-sal sociológico repleto de dados brutos sobre
os mais variados aspectos da vida social, aguardando serem mineirados e
transformados em informação apta a orientar a formulação de políticas públicas.
Para realizar essa tarefa, os pesquisadores em direito precisam se reciclar e
aprender a trabalhar em conjunto com cientistas da computação e estatísticos,
superando o antigo conceito de que o jurista é trabalhador solitário que vive
enfurnado em bibliotecas e sebos.
Como afirmou recentemente o ministro Teori
Zavaski em palestra sobre ativismo judiciário, proferida no Instituto Victor
Nunes Leal, a amplitude da Constituição Federal de 1988, as cláusulas abertas e
os mecanismos de coletivização processual colocaram para os juristas o desafio
de não apenas aplicar o direito que já existe a fatos pretéritos, mas de criar
direito novo para regular fatos futuros.
Marcelo Guedes Nunes é presidente da
Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), diretor do Instituto de Direito
Societário Aplicado (IDSA) e advogado em São Paulo