Jornal Valor Econômico – Legislação &
Tributos – (Rio) – 16.01.2014 – E2
Por Marcelo
Godke Veiga
Procusto é personagem da mitologia grega. Os viajantes que
passavam por sua casa eram acolhidos com uma refeição e um leito. A cama,
segundo ele, seria mágica, pois todos que nela se deitassem teriam o seu exato
tamanho. Para que a magia se concretizasse, no entanto, os viajantes maiores
que o leito teriam suas pernas amputadas, enquanto os menores seriam esticados.
Em ambos os casos, os viajantes "caberiam" com exatidão. Mas, como
consequência funesta, os poucos sobreviventes seriam aleijados. Para que todos
fossem torturados, Procusto possuía, secretamente, outra cama e, caso alguém
coubesse exatamente em uma delas, oferecer-lhe-ia a outra. Não havia como
escapar.
Procusto cometia tais atrocidades na busca pela justiça: todos
os sobreviventes teriam a mesma altura e passado pela mesma tortura. Os
aleijados sobreviventes começaram a se conformar com tamanha insanidade,
imaginando que o futuro seria promissor.
Pois bem. Hoje, no Brasil, algo bastante parecido acontece com
as micro e pequenas empresas (MPEs), principalmente no acesso ao mercado de
capitais. O discurso oficial do governo vai no sentido de apoiar as MPEs,
principalmente as chamadas de "startups", excelentes criadoras de
empregos que podem melhorar os índices de desenvolvimento econômico e de
distribuição de renda. A Constituição Federal em seu artigo 179, torna
obrigatório regime desburocratizado para as MPEs. Mas parece que Procusto saiu
dos livros de mitologia para virar realidade.
Observe-se as regras da Comissão de Valores Mobiliários (CMV).
Os artigos 7º da Instrução CVM nº 480, de 2009 e 5º da Instrução CVM nº 400, de
2003 dispensam automaticamente as MPEs dos registros de emissor de valores
mobiliários e de oferta pública, respectivamente, o que facilitaria o acesso ao
mercado de capitais. Aqui está o leito procustiano.
Ao se continuar a análise é fácil perceber que há algo muito
distorcido. O artigo 1º da Instrução CVM nº 480 determina que todos os
emissores de valores mobiliários adotem forma de sociedade anônima, exceto
quando a regulamentação dispuser de maneira diversa, e a única exceção em vigor
está no artigo 33 da mesma instrução, que permite às sociedades limitadas
emitir publicamente cédulas de crédito bancário e notas comerciais. Mas qual é
o problema com tal limitação? Bastante grande! Tais títulos são representativos
de dívida, não de capital, o que praticamente os torna inútil, já que o crédito
às startups, no mercado de capitais, é escasso e muito caro.
Mesmo no caso dos fundos de venture capital - os "fundos
mútuos de investimento em empresas emergentes" da Instrução CVM nº 209/94
-, que buscam investir em sociedades menores onde regras sofisticadas de
governança corporativa pouco importam, a única forma societária permitida é a
das sociedades anônimas.
A solução seria fazer a empresa inovadora adotar tal forma
societária. Mas é aí que Procusto começa sua maldade: a sociedade anônima é
sofisticada, complicada e de cara manutenção, o que vai absolutamente contra o
espírito e as limitações das startups. As obrigatórias publicações de
demonstrações financeiras e outros atos societários por meio da imprensa
oficial, além de absolutamente desnecessárias, seriam mais eficientes se feitas
por meio da internet.
Mesmo que a startup consiga escapar do primeiro leito de
Procusto, há o segundo, do qual a MPE não se desvencilhará. Segundo o artigo 3º
da Lei Complementar nº 123, de 2006 - a Lei do Simples Nacional -, a
microempresa é aquela com faturamento anual de até R$ 360 mil, enquanto na
empresa de pequeno porte tal limite é ampliado para R$ 3,6 milhões. O segundo
leito de Procusto está no parágrafo 4º do mesmo artigo, que proíbe, às MPEs, a
adoção de forma de sociedade por ações - inclusive a anônima.
Há mais uma maldade: o desenquadramento do regime da Lei
Complementar 123 equivale também à exclusão do Simples Nacional, regime
tributário favorecido aplicável às MPEs. Isso, por si só, é um grande absurdo,
já que coloca as jovens empresas de tecnologia em poucas condições de competir
doméstica e internacionalmente.
Trocando em miúdos, a suposta flexibilização das regras de
acesso ao mercado de capitais para as MPEs é verdadeiro leito de Procusto:
anuncia-se como mágica, mas que culmina com quase todos mortos ou aleijados,
mas supostamente conformados, pois seria medida de justiça e de proteção do
mercado de capitais. Só que tal proteção é excessiva, já que o potencial
destrutivo de uma emissão de valores mobiliários de uma MPE é absurdamente
baixo.
A adoção de política coordenada entre os órgãos federais
responsáveis pelo assunto (Secretaria da Micro e Pequena Empresa, Ministério do
Planejamento e CVM) e o Congresso Nacional poderá resolver rapidamente o
assunto, reduzindo-se as barreiras ao financiamento das startups por meio do
mercado de capitais. Uma das iniciativas mais louváveis que se viu nos últimos
anos é o Projeto de Lei nº 4.303, de 2012 que, quando aprovado, adotará o
regime das sociedades anônimas simplificadas, muito adequado às MPEs.
Marcelo Godke Veiga é sócio de Godke Silva & Rocha Advogados
(São Paulo) e de Godke Marathas Silva &Williams (Miami), mestre em direito
pela Columbia University (Estados Unidos) e pela Universiteit Leiden (Países
Baixos). Doutorando pela Universiteit van Amsterdam (Países Baixos) e professor
da FAAP, do Insper e do Instituto Internacional de Ciências Sociais/Centro de
Extensão Universitária.