quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O período de Ayres Brito no STF

Jornal Valor Econômico - 31.10.2012


A ameaça de pane

Por Rosângela Bittar

O ministro Carlos Ayres Britto, presidente do Supremo Tribunal Federal, tinha um objetivo em mente quando traçou o princípio mestre para sua conduta no processo do mensalão: evitar a pane do julgamento. Tudo reforçava a ameaça, a começar pelo gigantismo do processo de 38 réus, muitas imputações, 600 testemunhas. Só as relações de Marcos Valério davam um livro: ele tinha quatro empresas - DNA, SMP&B, 2S, Grafitti -, se relacionou com Banco do Brasil, Visanet, BMG, Banco Rural, Banco Mercantil de Pernambuco, com o Presidente da Câmara, usou a Guaranhuns como corretora, a Bônus-Banval, a Natimar. Se relacionou com os sócios publicitários e com os políticos. Um processo que tinha como réu o ministro braço direito do presidente da República mais popular da atual geração. Nada parecido havia passado pelo STF, um processo originalíssimo que exigia também originalidade no julgamento e pulso firme.

Um risco imenso, real, por tudo o que cercava e ainda cerca o caso, mais ainda tendo em vista a coincidência de fase conclusiva da tomada de posição no mérito com as eleições municipais. Nada ocorreu, desde o início, que pudesse minorar os temores, ao contrário.

A relutância do revisor do processo em entregar seu voto para que o trabalho não se iniciasse tinha sido um indício sério de pressão sobre ele, agravado com a confirmação de que o pior estava por vir com a revelação pública de pressão direta do ex-presidente Lula sobre ministros amigos para não haver o julgamento. Uma CPI foi criada para pressionar o promotor do caso. Logo na primeira sessão, houve a aprovação do revisor para um assunto já vencido em julgamento anterior, a questão do desmembramento. Em outro momento, entre outros lances espetaculares, a carta da presidente Dilma entrando diretamente na argumentação do voto do relator para contestar o uso de uma frase sua sobre as óbvias dificuldades para aprovação de pacotes, como o do setor elétrico, no Congresso.

Os princípios de Ayres Britto ajudam o STF a ir ao fim

Foi um lampejo ameaçador, que provou o acerto do presidente do Poder Judiciário em munir-se de cuidados para levar a termo a tarefa. Sobre a carta, em que a presidente toma assento metafórico no plenário da Suprema Corte, Britto deu à presidente consideração, ao esfriar os ânimos e afirmar que o relator também não precisava usar aquele exemplo, poderia ter buscado outro. E deixou que cada um dos contendores, presidente da República e relator do processo, se vissem nos próprios espelhos.

Muitos outros, cruciais, surgiram, todos transpostos pelo STF sob o comando de Ayres Britto com cordialidade, em taxas sempre elevadas, e bom senso. As vaias ao ministro revisor, de presença praticamente protagonista, além de voto sempre vencido, os debates às vezes ríspidos, chegando até ao insulto, entre o relator e revisor, temperamentos fortes, nunca ameaçaram, porém, a segurança do julgamento. Só faltava não ter divergência, tensão e calor em um caso como esse.

A previsão de pane era concreta, reforçada também pela atuação da banca de advogados de defesa, corporativos, como é natural, alguns deles responsáveis pelas definições dos crimes e seu tratamento político que esperavam ver acatados pela Corte Suprema, sem sucesso. O STF manteve-se no foco, no rumo, não seguiu pelo caminho que a defesa tentou lhe impor.

O tribunal foi muitas vezes desrespeitado, criticado, insultado, denegrido, mas segurou o tranco, não houve retrocesso. Todos os riscos contornados pelo presidente ajudado, é verdade, pela coesão do plenário em torno da ideia de evitar a pane que seria o retrocesso institucional, a interferência de um poder sobre o outro, a mobilização contra as decisões que resultasse em paralisia do STF.

A definição das penalidades, agora, quando se vai saber se algum dos réus vai para a cadeia, se o Supremo vai cassar o mandato de quem ainda o tem, ou se serão aplicados agravantes e aceitos atenuantes, uma parte subjetiva que sempre provoca contestação, pode manter o clima de tensão. A ser piorado pela campanha que o PT promete mover contra o STF a partir de agora, já sem perigo para o seu resultado eleitoral.

Parte do PT diz que o julgamento influenciou as eleições (onde perdeu), e parte desafia os que mantiveram o julgamento nesse período mostrando que nada influenciou (onde ganhou). Sente-se o partido liberado, de qualquer forma, para levar adiante o revide. Agora já sem Ayres Britto, que aposenta-se dia 18 e passa o cargo ao sucessor, Joaquim Barbosa, dia 22. Barbosa deverá coordenar o fim do julgamento com uma atuação mais suave do que a exibida até aqui, embora a divergência, por óbvia e natural, vá acontecer. A solução é, apesar das diferenças de temperamento, manter o critério e evitar a pane.

Ayres Britto, tal como fez o ex-ministro mineiro Carlos Veloso, vai continuar morando em Brasília. Quando se transferiu de Sergipe, há 10 anos, sua filha mais nova tinha 11 anos, e o filho 13. Tem um neto brasiliense de 3 anos e todos eles adoram Brasília. Manterá a vida acadêmica, intensa, que sempre teve, e a participação em bancas de doutorado de várias universidades, além da literatura e o hábito da meditação, que cultiva há 20 anos. Provavelmente o que mais o ajudou a atravessar a tormenta.

Na sua passagem pelo Supremo, produziu um livro de direito constitucional, "Ciência Quântica do Direito", o seu sexto. Tem um livro de poemas totalmente pronto, o "DNAlma", o sétimo. Vai alimentar a paixão pela leitura. Ayres Britto encerra sua participação no Supremo com intensos dois últimos anos, em que relatou a maioria dos processos de interesse da sociedade: a homoafetividade, a autorização para pesquisas com células-tronco embrionárias, o fim da Lei de Imprensa, a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, a autorização de aborto de anencéfalos (fetos com má formação no cérebro), a confirmação da Lei da Ficha Limpa, a proibição do nepotismo no Judiciário. Além de ter conduzido com firmeza, e sem pane, o julgamento do mensalão.

Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília. Escreve às quartas-feiras

Novo Código Comercial

Jornal Valor Econômico - Legislação & Tributos (Rio) - 31.10.2012 - E2


Um novo Código Comercial é necessário?

Por Luciano Benetti Timm

Escrevemos aqui nesta coluna sobre a pertinência de um novo código comercial. Mostramos que, em tese, a ideia é boa se fosse para separar bem a atividade empresarial de outros ramos do direito privado, recuperando princípios e valores próprios do direito comercial. Vejamos agora, então, se o projeto que tramita no Congresso cumpre o papel emancipatório da atividade empresarial.

O primeiro ponto a ser examinado é a concepção de constituir um código principiológico, isto é, fundado em princípios. Aqui a análise pode ser dividida em dois pontos: a) adequação teórica desses princípios; b) pertinência operacional.

No que tange ao primeiro aspecto, há que se perquirir se os princípios em que se assentam a legislação são coerentes à realidade empresarial. Com efeito, como já dissemos, o que deve ser uma empresa (juridicamente) não deve ser muito diferente do que é uma empresa concretamente.

Afinal, o que é uma empresa? É uma organização que reduz os custos de transação de mercado. Ao invés de os agentes econômicos atuarem individualmente no espaço público do mercado, eles se organizam para aumentar a eficiência de suas relações contratuais (Sztajn & Zylbersztajn, 2005). Sua regulação é necessária e deve ser feita por órgãos específicos como a CVM, o Cade e outras agências reguladoras que detêm conhecimento na atividade econômica em jogo, mas não pelo direito comercial, nem pelo Poder Judiciário.

Vejamos, então, quais os princípios propostos no Código Comercial para a atividade empresarial:

"Art. 4º São princípios gerais informadores das disposições deste Código: I - Liberdade de iniciativa; II - Liberdade de competição; e III - Função social da empresa."

"Art. 7º A empresa cumpre sua função social ao gerar empregos, tributos e riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econômico, social e cultural da comunidade em que atua, de sua região ou do país, ao adotar práticas empresariais sustentáveis visando à proteção do meio ambiente e ao respeitar os direitos dos consumidores, desde que com estrita obediência às leis a que se encontra sujeita."

Em seu texto, a principiologia da atividade empresarial não parece absolutamente distante da prática. Isto é, associar a função social da empresa à geração de riqueza, de tributos e de empregos e conectando tudo isso à livre iniciativa e à livre concorrência, que são a base de uma economia de mercado. Portanto, a linguagem do Código Comercial não nos parece equivocada.

Precisaria dizer isso numa lei? Cremos que o momento seja propício para renovar o compromisso brasileiro com um sistema capitalista, no qual a empresa é motor do desenvolvimento. Afinal, como dizia Robbins, "pior que ser explorado pelo capitalismo, é não ser explorado pelo capitalismo".

Os benefícios compensam os riscos? Esta é a discussão que devemos travar

Agora, já no plano operacional, um código principiológico tem lá seus inconvenientes, mormente se voltados à área empresarial. De fato, os juristas já estiveram mais entusiasmados com as "teorias dos princípios". No entanto, na experiência jurídica brasileira, alguns excessos vêm sendo cometidos por juízes e doutrinadores em nome de princípios jurídicos como "dignidade humana", "função social", "boa-fé" e tantos outros.

Ora, "pondera-se" ("alexyanamente") tudo e acaba-se por afastarem-se normas legais expressas do sistema jurídico em nome destes "princípios". Uma boa ilustração disso é um interessante catálogo principiológico (Carvalho, 2011), que dá conta de que existem mais de 200 princípios citados na jurisprudência apenas em matéria tributária! É uma verdadeira "farra principiológica" Macedo, 2006).

Nesse sentido, pode-se imaginar que os princípios gerais do Código Comercial deveriam ou poderiam nortear a (re)interpretação de todas as leis comerciais (verdadeiros microssistemas legislativos com princípios e valores próprios) que têm já consolidados uma orientação assentada nos tribunais e na doutrina. Veja-se, por exemplo, a insegurança jurídica que seria gerada com uma possível reinterpretação da Lei das Sociedades Anônimas de 1976 à luz de novos princípios instituídos por lei.

Insegurança jurídica traz maiores custos de transação aos agentes econômicos, que devem gastar mais para esclarecem o sentido das novas normas e se protegerem mais justamente de novas possíveis interpretações jurídicas.

Mas não é só isso. Possíveis novas interpretações derivadas de princípios também geram outros custos para a sociedade representados em litígios judiciais que serão formados a fim de garantir e testar novas teorias (Posner, 1977). A experiência brasileira nos mostra (a partir do que aconteceu com o Código de Defesa do Consumidor e com o Código Civil) que a jurisprudência precisa de cerca de dez anos para assentar um entendimento sobre um assunto (entre ações, recursos, etc). E quem pagará por essa conta, afinal sabemos que os litígios judiciais são subsidiados pela sociedade civil na forma de impostos, que revertem ao Poder Judiciário em sua fração do orçamento público (normalmente entre 6% a 7%).

Há que se reconhecer, de outra parte, que a linguagem do código diminui essa margem e arbitrariedade interpretativa, ao determinar: em seu artigo 8º que "nenhum princípio, expresso ou implícito, pode ser invocado para afastar a aplicação de qualquer disposição deste Código ou da lei."

A estratégia adotada é engenhosa. Reconhecendo a "farra princiológica" que ronda a doutrina e prática jurídicas, prefere desvelá-la, estabelecendo limites a sua aplicação e construção.

O ponto, em conclusão, é, ficamos melhor como está atualmente com este novo Código Comercial? Os benefícios compensam os riscos (custos)? Esta é a discussão que devemos travar.

Luciano Benetti Timm é advogado, doutor em direito pela UFRGS. Pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Berkeley, Califórnia

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Eis o veículo (Motorella) que tenho utilizado para andar na ciclovia da Lagoa e ir ao trabalho sem suar