sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Ministério Público e investigação criminal

Jornal do Commercio –Direito & Justiça – 29.12.08 – B-7
MP na investigação criminal
DA REDAÇÃO
O procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) parecer pela improcedência da ação direta de inconstitucionalidade (Adin), com pedido de liminar, proposta pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol-Brasil) contra disposições que tratam da atuação dos membros do Ministério Público na investigação criminal. A Adin tem como relator o ministro Ricardo Lewandowski, que, ao invés de analisar o pedido de liminar, decidiu que a matéria deverá ser examinada diretamente em seu mérito. Desde que a ação foi proposta, em 2006, diversas entidades representativas de policiais, magistrados e membros do Ministério Público foram admitidos ao processo como amici curiae (amigos da corte). No último dia 18, a Adepol-Brasil requereu que fosse requisitada a devolução dos autos pela Procuradoria Geral da República (PGR), que agora os devolveu com seu parecer.A Adepol alega a inconstitucionalidade dos artigos 7º, incisos I, II e III; 8º, incisos I, II, IV, V, VI, VII e IX; 38. I, II e III e 150, I, II e III, todos da Lei Complementar (LC) 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União. A entidade impugna, também, o artigo 26, inciso I, alíneas a, b e c, da Lei 8.625/1993, que institui a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados e dá outras providências. Por fim, pede que seja declarada a inconstitucionalidade total da Resolução 13/2006, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que regulamenta a investigação criminal pelo Ministério Público (MP).A Adepol-Brasil argumenta que os poderes de investigação são atribuição exclusiva dos delegados de polícia e que, portanto, as normas atacadas afrontariam a Constituição Federal (CF), sobretudo os seus artigos 2º; 5º, incisos II, LIII e LIV; 22, inciso I; 24, inciso XI; 129, incisos I, II, VI , VII e VIII e 144, parágrafo 1º, incisos I, II e IV e parágrafo 4º.Consultado, o CNMP manifestou-se, preliminarmente, pelo não cabimento da Adin face à Resolução 13/06, observando que ela constitui mera reprodução de normas estabelecidas na legislação nacional (LC 75 e Lei 8.625/93). Portanto, não teria caráter autônomo para ser atacada em Adin.Igual manifestação foi colhida da Presidência da República e da Advocacia-Geral da União (AGU). No mérito, o CNMP sustentou que inexiste incongruência entre a direta realização de diligências por membros do MP, no âmbito da investigação criminal, e qualquer dispositivo constitucional. No mesmo sentido se manifestaram a Presidência da República (além do CNMP e do Congresso Nacional, o presidente da República é um dos requeridos na Adin) e a AGU. Eles se posicionaram a favor da possibilidade de o MP realizar investigação criminal, sem contaminar as investigações por sua participação na colheita pré-processual da prova. Em seu parecer, a PGR observa que não se pode confundir o conceito "polícia judiciária" com o de "investigação criminal". Segundo a Procuradoria, trata-se de conceitos próximos, mas distintos. Ela lembra que a Constituição Federal (CF), em seu artigo 144, parágrafo 1º, sem mencionar exclusividade de qualquer espécie, atribui à Polícia Federal a "investigação de determinadas infrações penais". Assim, não há como incluir, mesmo em termos léxicos, a investigação criminal dentro do conceito "polícia judiciária".Segundo a PGR, "as funções investigatórias do Ministério Público decorrem do sistema constitucional e, designadamente, da combinação dos incisos I, III, VIII e IX do artigo 129 da CF. A impossibilidade, em certas circunstâncias, de separar o caráter penal das repercussões civis dos ilícitos reforça esse poder ministerial".legitimidade. Ainda segundo a PGR, "o acertado entendimento de que o MP tem legitimidade para atuar na investigação criminal desenvolve, ademais, a teoria dos poderes implícitos - inherente powers - pacificada no direito americano, segundo a qual a concessão de uma função a determinado órgão ou instituição pela própria Constituição traz consigo, implicitamente, a concessão dos meios necessários à sua concretização. Esses meios foram devidamente reconhecidos pelo Poder Legislativo".Por fim, a PGR argumenta que "a tese da imparcialidade do MP que, segundo alguns, impediria sua atuação nas investigações criminais - porquanto contaminaria a formação da opinio delicti (fundadas suspeitas sobre a existência do delito) -, destoa completamente da visão do processo penal constitucional".Segundo a PGR, "este raciocínio ignora que a possibilidade de investigação criminal pelo MP leva em consideração uma fórmula institucional, dentro da qual - não há razão para se pensar de outra forma - está envolvida uma instituição pública com conceitos e padrões de atuação bem fixados".A possibilidade de o Ministério Público participar de investigação criminal é objeto de diversas Adins e de um Inquérito em tramitação no STF e ainda não tem pronunciamento oficial da Corte. Ainda sem julgamento no STF sobre o assunto estão Adins propostas pelo Partido Liberal (PL) em 2003; duas ajuizadas pela Adepol-Brasil no Distrito Federal e em Minas Gerais, ambas em 2004; uma proposta pela PGR em Rondônia, naquele mesmo ano. Tramitam, ainda, no STF, Adins ajuizadas pela Adepol no Rio Grande do Sul em 2004; outras três propostas por seccionais da Adepol em várias estados; e, por fim, o Inquérito 1968, proposto pelo Ministério Público Federal no DF em 2003.O assunto divide a jurisprudência. Basicamente, a divergência é entre uma corrente que defende fortemente a exclusividade de atribuições e recusa a atuação direta dos membros do MP na investigação criminal, e outra, que defende essa possibilidade, argumentando que ela representa um reforço saudável na estrutura do sistema.

MP das filantrópicas

Jornal do Commercio - País - 29.12.08 -A-8

Brechas abertas pela MP da Filantropia
Alessandra Mello
Do Estado de Minas

O Senado devolveu para o governo federal a polêmica medida provisória da Filantropia (MP 446), editada há cerca de um mês, que anistia pelo menos 928 entidades interessadas em obter ou renovar o certificado de assistência social. O documento reconhece oficialmente a atuação sem fins lucrativos para garantia de isenção de impostos federais. Apesar de seu destino incerto, a medida continua em vigor, beneficiando, só em Minas Gerais, pelo menos 27 instituições, algumas ligadas a políticos e a maioria delas com atuação na área de educação. A decisão só deve sair em março, quando a MP da filantropia caduca. Até lá, a expectativa é que o impasse em torno da constitucionalidade dessa iniciativa do Executivo seja resolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O Ministério Público Federal (MPF) contesta a validade da MP da Filantropia e pede que ela seja anulada. A medida chegou ao Congresso em 6 de novembro e deveria ser analisada até março, quando perde a validade. O governo desistiu de reenviar a MP ao Congresso e encaminhou ao Senado um projeto de lei para substituir o texto, mas, se fosse tramitar normalmente, as chances de a MP ser aprovada não seriam pequenas, já que muitas das entidades na expectativa de serem beneficiadas têm relações com políticos de todo o País. Caso da Associação Salgado de Oliveira de Educação e Cultura, que administra as faculdades da família do senador Wellington Oliveira (PMDB), e da Fundação José Bonifácio Lafayette Andrada, comandada pela família do deputado federal Bonifácio Andrada (PSDB). O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), que até a edição da MP era o responsável por analisar os processos de emissão do certificado de filantropia, não dá informações sobre nenhum dos processos que poderão ser beneficiados pelo perdão fiscal. Informou apenas, por meio da assessoria de Comunicação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que os casos parados no conselho estão em análise e serão encaminhados aos respectivos ministérios para a verificação. É que além de anistiar todas as entidades com pendências no CNAS - a maioria delas com recursos contra a negativa do conselho em expedir o certificado de filantropia -, a MP também determinou que cada ministério fique responsável por analisar os pedidos de reconhecimento de entidades de assistência social.Força-tarefa. A justificativa oficial é que essa mudança na norma vai agilizar a tramitação dos 928 processos. Todos eles foram alvo de uma força-tarefa proposta pelo governo federal em julho, para analisar os casos pendentes do conselho. A intenção do mutirão, criada por decreto, era analisar os processos pendentes e depois passar os relatórios para que o Ministério da Previdência Social desse a palavra, já que as isenções das entidades são na área da contribuição patronal ao INSS. Quase quatro meses depois, nenhum deles foi despachado definitivamente. Se o impasse continuar, todos os processos contra essas entidades poderão perder a validade, já que a Receita Federal encurtou o prazo para que as dívidas da Previdência sejam cobradas na Justiça. Como o governo federal não sabe o que vai acontecer, um projeto de lei já foi enviado ao Senado para substituir o texto da MP da Filantropia, maliciosamente apelidada pela oposição de "pilantropia". A intenção era votá-lo até o fim deste ano, o que não ocorreu. Prevista para 17 de dezembro, a votação do projeto na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado foi adiada e a proposta só volta a tramitar na Casa ao fim do recesso parlamentar.Pelo novo texto do governo, as instituições filantrópicas sem qualquer problema terão os certificados provisórios de funcionamento renovados pelos ministérios aos quais estão ligadas. As instituições com pendências de ordem fiscal ou jurídica terão de recorrer caso a decisão final seja de não conceder a certificação. Nestes casos, enquanto o recurso não for analisado, a Receita Federal lançará os débitos pendentes, que ficarão suspensos, sendo anulados ou cobrados quando o ministério julgar os pedidos, ao contrário do que previa a medida provisória devolvida, que renovava automaticamente certificados de entidades filantrópicas, inclusive daquelas suspeitas de fraudes.A reportagem tentou falar com o senador Wellington Oliveira (PMDB) e com o deputado federal Bonifácio Andrada (PSDB), mas não conseguiu contato com os políticos.

Polêmica no Congresso
A medida provisória que modifica as regras para concessão de certificados de filantropia e renova automaticamente as licenças pendentes no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) foi recebida pelo Congresso Nacional no dia 7 de novembro. A discussão do tema no Senado criou uma polêmica sobre a validade de uma MP que, em termos práticos, anistia entidades ameaçadas de perderem os certificados. O texto provocou protestos porque renovou, de uma só vez, a permissão de funcionamento para mais de duas mil entidades beneficentes, mesmo daquelas que teriam cometido irregularidades. Mas o governo alega que a MP foi necessária para prorrogar o prazo de cinco anos estabelecido para a prescrição das dívidas tributárias das entidades, cobradas pela Receita Federal, porque o CNAS não conseguiria analisar os recursos em tempo hábil diante do volume acumulado. O prazo vence no dia 31 de dezembro.Em função da polêmica, no dia 19 de novembro, o presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), devolveu a MP das Filantrópicas para o governo com o argumento de que a MP não obedecia aos critérios de urgência e relevância. O líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), apresentou um recurso na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) questionando a legalidade da devolução da MP. Ainda não há parecer para a consulta. A MP, portanto, continua em vigor. (AM)

Tendências da responsabilidade civil

Valor Econômico - Legislação & Tributos - 29.12.08 - E2

Novos paradigmas da responsabilidade civil
Sílvio de Salvo Venosa

Há dois campos no direito civil que sofrem transformações mais acentuadas no fim do século XX e início deste século: o da responsabilidade civil e o da família. O direito de família transformou-se principalmente entre nós após a Constituição Federal de 1988, não tendo o Código Civil de 2002 dado uma resposta à altura dos anseios sociais. A doutrina e a jurisprudência vêm suprindo as omissões legislativas com o maior empenho.

Por outro lado, na responsabilidade civil o mais recente diploma civil introduziu disposições que alteram paradigmas do passado na esfera do estatuto de 1916, como quase dogmas. Assim, podem ser apontados com maior ênfase os textos dos artigos 927 e seu parágrafo único, 928, 931, 936, 944 e seu parágrafo único e 945. Aqui tecemos algumas considerações sobre o parágrafo do artigo 927.
Ao se analisar a teoria do risco - mais exatamente o chamado risco criado - nessa fase de responsabilidade civil de pós-modernidade, o que se leva em conta é a potencialidade de ocasionar danos, a atividade ou conduta do agente que resulta, por si só, na exposição a um perigo, noção introduzida pelo artigo 2.050 do Código Civil italiano de 1942. Leva-se em conta o perigo da atividade do causador do dano por sua natureza e pela natureza dos meios adotados. Muitos dos novos princípios contratuais e de responsabilidade inseridos no Código Civil de 2002 já figuravam como princípios expressos ou implícitos no Código de Defesa do Consumidor.
A teoria da responsabilidade objetiva bem demonstra o avanço da responsabilidade civil nos séculos XIX e XX. Foram repensados e reestruturados muitos dogmas a partir da noção de que só havia responsabilidade com culpa. O âmbito da responsabilidade sem culpa aumenta significativamente em vários segmentos dos fatos sociais. Tanto assim é que culmina com a amplitude permitida pelo parágrafo único do artigo 927 do Código Civil: "Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".
Na responsabilidade objetiva, há, em princípio, uma pulverização do dever de indenizar por um número amplo de pessoas. Contudo, o princípio gravitador da responsabilidade extracontratual no Código Civil ainda é o da responsabilidade subjetiva, ou seja, da responsabilidade com culpa, pois essa também é a regra geral traduzida na legislação em vigor, no caput do artigo 927 do código. Em situações excepcionais o juiz poderá concluir pela responsabilidade objetiva no caso que examina. No entanto, advirta-se, o dispositivo questionado explicita que somente pode ser definida como objetiva a responsabilidade do causador do dano quando este decorrer de "atividade normalmente desenvolvida" por ele. O juiz deve avaliar, no caso concreto, a atividade costumeira do ofensor e não uma atividade esporádica ou eventual, qual seja, aquela que, por um momento ou por uma circunstância, possa ser um ato de risco. Não sendo levado em conta esse aspecto, poder-se-á transformar em regra o que o legislador colocou como exceção.
A noção clássica de culpa foi sofrendo, no curso da História, constantes temperamentos em sua aplicação. Nesse sentido, as primeiras atenuações em relação ao sentido clássico de culpa traduziram-se nas "presunções de culpa" e em mitigações no rigor da apreciação da culpa em si. Os tribunais foram percebendo que a noção estrita de culpa, se aplicada rigorosamente, deixaria inúmeras situações de prejuízo sem ressarcimento. Não se confunde a presunção de culpa, onde culpa deve existir apenas se invertendo os ônus da prova, com a responsabilidade sem culpa ou objetiva, na qual se dispensa a culpa para o dever de indenizar. De qualquer forma, as presunções de culpa foram um importante degrau para se chegar à responsabilidade objetiva.
A teoria do risco aparece na história do direito, portanto, com base no exercício de uma atividade, dentro da idéia de que quem exerce determinada atividade e tira proveito direto ou indireto dela responde pelos danos que ela causar, independentemente de culpa sua ou de prepostos. O princípio da responsabilidade sem culpa ancora-se em um princípio de eqüidade: quem aufere os cômodos de uma situação deve também suportar os incômodos. O exercício de uma atividade que possa representar um risco obriga por si só a indenizar os danos causados por ela. No direito mais recente, a teoria da responsabilidade objetiva é justificada tanto sob o prisma do risco como sob o prisma do dano. Não se indenizará unicamente porque há um risco, mas porque há um dano e, nesse último aspecto, em muitas ocasiões dispensa-se o exame do risco.
A insuficiência da fundamentação da teoria da culpabilidade levou à criação da teoria do risco, a qual sustenta que o sujeito é responsável por riscos ou perigos que sua atuação promove, ainda que coloque toda diligência para evitar o dano. Trata-se da denominada teoria do risco criado ou do risco benefício. O sujeito obtém vantagens ou benefícios, e em razão dessa atividade deve indenizar os danos que ocasiona. Cuida-se da responsabilidade sem culpa em inúmeras situações nas quais sua comprovação inviabilizaria a indenização para parte presumivelmente mais vulnerável. A legislação dos acidentes do trabalho é um exemplo emblemático desse aspecto.
A inovação presente no parágrafo sob exame requer extrema cautela na sua aplicação. Por esse dispositivo, a responsabilidade objetiva aplica-se, além dos casos descritos em lei, também "quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". Por esse dispositivo, o julgador poderá definir como objetiva a responsabilidade do causador do dano no caso concreto. Esse alargamento da noção de responsabilidade constitui realmente a maior inovação do novo Código Civil em matéria de responsabilidade e requererá, sem dúvida, um cuidado extremo dos tribunais. É discutível a conveniência de uma norma genérica nesse sentido. Melhor seria que se mantivesse nas rédeas do legislador a definição da teoria do risco. As dificuldades começam pela compreensão da atividade de risco. Em princípio, toda atividade gera um risco. É fato, por outro lado, que o risco por si só não gera o dever de indenizar se não houver dano. Por outro lado, se dano houver, deve ser certo e avaliável.
De qualquer modo, alargar o campo da responsabilidade objetiva com uma norma aberta, sem um critério concreto, causa extrema instabilidade e pode ser colocada a serviços de espíritos insinceros, aventureiros ou toscos. Com isso há fundado receio de que os tribunais realcem o elemento dano, preterindo a constatação de culpa de forma geral, deixando uma das partes simplesmente sem defesa.
A jurisprudência ainda é inicial nos primeiros anos de vigência do Código Civil de 2002. Ainda levaremos algum tempo para maior amadurecimento e estabilidade dos julgados.
Sílvio de Salvo Venosa é autor de várias obras de direito civil, consultor e parecerista nessa área

Tendências da responsabilidade civil

Valor Econômico - Legislação & Tributos - 29.12.08 - E2
Novos paradigmas da responsabilidade civil
Sílvio de Salvo Venosa

Há dois campos no direito civil que sofrem transformações mais acentuadas no fim do século XX e início deste século: o da responsabilidade civil e o da família. O direito de família transformou-se principalmente entre nós após a Constituição Federal de 1988, não tendo o Código Civil de 2002 dado uma resposta à altura dos anseios sociais. A doutrina e a jurisprudência vêm suprindo as omissões legislativas com o maior empenho.

Por outro lado, na responsabilidade civil o mais recente diploma civil introduziu disposições que alteram paradigmas do passado na esfera do estatuto de 1916, como quase dogmas. Assim, podem ser apontados com maior ênfase os textos dos artigos 927 e seu parágrafo único, 928, 931, 936, 944 e seu parágrafo único e 945. Aqui tecemos algumas considerações sobre o parágrafo do artigo 927.
Ao se analisar a teoria do risco - mais exatamente o chamado risco criado - nessa fase de responsabilidade civil de pós-modernidade, o que se leva em conta é a potencialidade de ocasionar danos, a atividade ou conduta do agente que resulta, por si só, na exposição a um perigo, noção introduzida pelo artigo 2.050 do Código Civil italiano de 1942. Leva-se em conta o perigo da atividade do causador do dano por sua natureza e pela natureza dos meios adotados. Muitos dos novos princípios contratuais e de responsabilidade inseridos no Código Civil de 2002 já figuravam como princípios expressos ou implícitos no Código de Defesa do Consumidor.
A teoria da responsabilidade objetiva bem demonstra o avanço da responsabilidade civil nos séculos XIX e XX. Foram repensados e reestruturados muitos dogmas a partir da noção de que só havia responsabilidade com culpa. O âmbito da responsabilidade sem culpa aumenta significativamente em vários segmentos dos fatos sociais. Tanto assim é que culmina com a amplitude permitida pelo parágrafo único do artigo 927 do Código Civil: "Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".
Na responsabilidade objetiva, há, em princípio, uma pulverização do dever de indenizar por um número amplo de pessoas. Contudo, o princípio gravitador da responsabilidade extracontratual no Código Civil ainda é o da responsabilidade subjetiva, ou seja, da responsabilidade com culpa, pois essa também é a regra geral traduzida na legislação em vigor, no caput do artigo 927 do código. Em situações excepcionais o juiz poderá concluir pela responsabilidade objetiva no caso que examina. No entanto, advirta-se, o dispositivo questionado explicita que somente pode ser definida como objetiva a responsabilidade do causador do dano quando este decorrer de "atividade normalmente desenvolvida" por ele. O juiz deve avaliar, no caso concreto, a atividade costumeira do ofensor e não uma atividade esporádica ou eventual, qual seja, aquela que, por um momento ou por uma circunstância, possa ser um ato de risco. Não sendo levado em conta esse aspecto, poder-se-á transformar em regra o que o legislador colocou como exceção.
A noção clássica de culpa foi sofrendo, no curso da História, constantes temperamentos em sua aplicação. Nesse sentido, as primeiras atenuações em relação ao sentido clássico de culpa traduziram-se nas "presunções de culpa" e em mitigações no rigor da apreciação da culpa em si. Os tribunais foram percebendo que a noção estrita de culpa, se aplicada rigorosamente, deixaria inúmeras situações de prejuízo sem ressarcimento. Não se confunde a presunção de culpa, onde culpa deve existir apenas se invertendo os ônus da prova, com a responsabilidade sem culpa ou objetiva, na qual se dispensa a culpa para o dever de indenizar. De qualquer forma, as presunções de culpa foram um importante degrau para se chegar à responsabilidade objetiva.
A teoria do risco aparece na história do direito, portanto, com base no exercício de uma atividade, dentro da idéia de que quem exerce determinada atividade e tira proveito direto ou indireto dela responde pelos danos que ela causar, independentemente de culpa sua ou de prepostos. O princípio da responsabilidade sem culpa ancora-se em um princípio de eqüidade: quem aufere os cômodos de uma situação deve também suportar os incômodos. O exercício de uma atividade que possa representar um risco obriga por si só a indenizar os danos causados por ela. No direito mais recente, a teoria da responsabilidade objetiva é justificada tanto sob o prisma do risco como sob o prisma do dano. Não se indenizará unicamente porque há um risco, mas porque há um dano e, nesse último aspecto, em muitas ocasiões dispensa-se o exame do risco.
A insuficiência da fundamentação da teoria da culpabilidade levou à criação da teoria do risco, a qual sustenta que o sujeito é responsável por riscos ou perigos que sua atuação promove, ainda que coloque toda diligência para evitar o dano. Trata-se da denominada teoria do risco criado ou do risco benefício. O sujeito obtém vantagens ou benefícios, e em razão dessa atividade deve indenizar os danos que ocasiona. Cuida-se da responsabilidade sem culpa em inúmeras situações nas quais sua comprovação inviabilizaria a indenização para parte presumivelmente mais vulnerável. A legislação dos acidentes do trabalho é um exemplo emblemático desse aspecto.
A inovação presente no parágrafo sob exame requer extrema cautela na sua aplicação. Por esse dispositivo, a responsabilidade objetiva aplica-se, além dos casos descritos em lei, também "quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". Por esse dispositivo, o julgador poderá definir como objetiva a responsabilidade do causador do dano no caso concreto. Esse alargamento da noção de responsabilidade constitui realmente a maior inovação do novo Código Civil em matéria de responsabilidade e requererá, sem dúvida, um cuidado extremo dos tribunais. É discutível a conveniência de uma norma genérica nesse sentido. Melhor seria que se mantivesse nas rédeas do legislador a definição da teoria do risco. As dificuldades começam pela compreensão da atividade de risco. Em princípio, toda atividade gera um risco. É fato, por outro lado, que o risco por si só não gera o dever de indenizar se não houver dano. Por outro lado, se dano houver, deve ser certo e avaliável.
De qualquer modo, alargar o campo da responsabilidade objetiva com uma norma aberta, sem um critério concreto, causa extrema instabilidade e pode ser colocada a serviços de espíritos insinceros, aventureiros ou toscos. Com isso há fundado receio de que os tribunais realcem o elemento dano, preterindo a constatação de culpa de forma geral, deixando uma das partes simplesmente sem defesa.
A jurisprudência ainda é inicial nos primeiros anos de vigência do Código Civil de 2002. Ainda levaremos algum tempo para maior amadurecimento e estabilidade dos julgados.
Sílvio de Salvo Venosa é autor de várias obras de direito civil, consultor e parecerista nessa área

Registro da alienação fiduciária de veículos

Valor Econômico - Legislação & Tributos - 26, 27 e 28.12.08 - E3

A alienação fiduciária de veículos e os cartórios
Glauber Moreno Talavera
Os sortilégios e a controvertida mística do clérigo russo Rasputin, se convertidos para as letras jurídicas, certamente criariam um mosaico de passes de ilusionismo retórico, malabarismos literários, circunlóquios e piruetas verbais que favoreceriam a interpretação equivocada que atualmente tem corrompido a essência da norma contida no parágrafo 1º do artigo 1.361 do Código Civil. Ao prever que a propriedade fiduciária constitui-se com o registro do contrato no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, o normativo referido evidenciou que o registro haverá de ser realizado em um ou em outro e não em um e em outro órgão, ressaltando a aplicação do disjuntivo e não do conectivo, lógica essa que fora reiterada expressamente pelo artigo 27 da recém-aprovada Lei de Consórcios - a Lei nº 11.795, de 2008 -, cujo termo inicial de vigência será 6 de fevereiro de 2009.

Em outras palavras, o registro dos contratos de alienação em garantia de veículos na repartição competente para o licenciamento torna despiciendo qualquer outro registro. Todavia, embora simples a interpretação da norma, é certo que a hipertrofia do mercado brasileiro de automotores robustece a tentativa de subverter a essência da lei, uma vez que mais de dois terços do total de veículos emplacados neste ano foram adquiridos mediante financiamento, via de regra garantido pelo negócio fiduciário acessório que teve como objeto, por meio de condição resolutiva, a transitória alienação do próprio veículo pelo consumidor adquirente - devedor fiduciante - à instituição que financiou sua aquisição - credora fiduciária - até quitação das prestações e a conseqüente liquidação do contrato.
Sob o argumento de que a disjunção, que enaltece a necessidade de registro do contrato de alienação fiduciária de veículos apenas na repartição competente para o licenciamento, decorre de um singelo erro de redação do parágrafo 1º do artigo 1.361 do Código Civil - que utilizou "ou" e não "e", como ensejado pelos que esposam esse entendimento -, expedem-se aqui e acolá normativos em que se entrevê a arbitrariedade das próprias razões de seus conceptores, que passam ao largo da complexidade do processo legislativo que culminou com a promulgação do monumento que é o Código Civil brasileiro e, talvez em razão disso, enveredem caminhos transversos para retocar o que entendem corrompido.
Vale ressaltar que, esposando o mesmo propósito de corrigir a redação do do parágrafo 1º do artigo 1.361 do Código Civil, foram apresentados pelo à época deputado Ricardo Fiúza o Projeto de Lei nº 6.960 e o Projeto de Lei nº 7.312, ambos de 2002, que, tendo recebido parecer desfavorável do então deputado Luiz Antonio Fleury Filho, foram arquivados. Afora os referidos, há outros inspirados pela mesma ordem de idéias - tal qual o Projeto de Lei nº 3.351, de 2004, e o Projeto de Lei nº 309, de 2007 - que, à míngua de uma engenharia argumentativa melhor sedimentada, seguem reproduzindo o notadamente combalido mantra do erro de redação.
Sem olvidar a inteligência e a interpretação sistêmica a que se submete o artigo 236 da Constituição Federal, ao conjugar o texto do parágrafo 1º do artigo 1.361 do Código Civil com as disposições dos artigos 127 a 131 da Lei de Registros Públicos - a Lei nº 6.015, de 1973 -, que versam especificamente sobre as atribuições do registro de títulos e documentos, conclui-se que o Código Civil, ao estabelecer no ano de 2002 que é bastante o registro do contrato de alienação fiduciária de veículos na repartição competente para o licenciamento, revogou tacitamente a previsão contrária que, em vigor desde 1973, disciplinou o regime dos serviços concernentes aos registros públicos. Na mesma linha de entendimento, o Supremo Tribunal Federal (STF), na decisão unânime proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 2.150-8, considerou constitucional o registro da alienação fiduciária de veículos diretamente nas repartições de trânsito, dispensada a atuação dos cartórios.
Integrando o arcabouço interpretativo que destoa totalmente do que está previsto de forma expressa no Código Civil, tem-se também a alegação de que o registro do contrato de alienação fiduciária de veículos nos cartórios de títulos e documentos tem o condão de reduzir o potencial de fraudes na expedição do Certificado de Registro e Licenciamento de Veículos (CRLV), uma vez que tais inconsistências são atribuídas à falta de estrutura dos Detrans para prestar tal serviço e dar publicidade ao ato. Sobre a suposta segurança dos procedimentos de registro, vale trazer à lembrança o voto proferido pelo ministro Athos Gusmão Carneiro, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Especial nº 1.774-0, de São Paulo, que concluiu que "a publicidade que o registro de títulos e documentos proporciona não supera os limites da ficção, pela quase impossibilidade total que terceiros têm na consulta a esses registros, para verificar a situação do bem".
Suplantando os erros dessa dinâmica, a maioria dos que esposavam a tese da obrigatoriedade dos registros dos contratos em cartório sucumbiu diante de decisões judiciais que retiraram, liminarmente ou no mérito, a eficácia dos normativos expedidos em desconformidade com o que preceitua o parágrafo 1º do artigo 1.361 do Código Civil.
Atualmente, como expressão natural da racionalidade que inspira o contínuo aprimoramento da interpretação das normas, é de concluir-se que a atecnia da exigência do duplo registro continuará sendo paulatinamente apagada e certamente a última sonata dos poucos que ainda insistem nessa ilegalidade está em um porvir muito próximo, como ocorre na clássica "Sinfonia dos adeuses", de Haydn, em que cada músico, quando termina sua partitura, apaga a vela que ilumina seu atril e simplesmente vai embora.
Glauber Moreno Talavera Glauber Moreno Talavera é advogado, mestre e doutor em direito civil e doutorando em direito processual civil pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e professor das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU)

Registre as histórias, fatos relevantes, curiosidade sobre Paulo Amaral: rasj@rio.com.br. Aproveite para conhecê-lo melhor em http://www2.uol.com.br/bestcars/colunas3/b277b.htm

Eis o veículo (Motorella) que tenho utilizado para andar na ciclovia da Lagoa e ir ao trabalho sem suar